Por Samuel Hanan
Por muito tempo, ouvimos a expressão “o Brasil é o país do futuro”. Os anos passam e essa projeção nunca se concretiza, como se o futuro estivesse cada vez mais distante. Ainda é possível permanecermos otimistas em relação a isso? A resposta é não, porque a nação se mostra displicente com as futuras gerações, conforme mostram os números oficiais.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) de 2018, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as crianças e adolescentes representam 33,79% da população, totalizando 68,6 milhões de pessoas. As crianças, sozinhas, são 35,5 milhões, ou 17,4% da população.
A maioria de nossas crianças e adolescentes (81,7%) reside na área urbana, porém ainda é grande o percentual dos que vivem na área rural no Norte (29,7%) e no Nordeste (30,1%). As crianças dessas regiões são as que mais sofrem com renda familiar baixa. Em 2018, havia 11,7 milhões de crianças com até 14 anos de idade vivendo em domicílios com renda per capita de até R$ 275,00 por mês (1/4 do salário mínimo à época do levantamento), a maior parte delas no Norte (32%) e no Nordeste (31%), bem mais que no Sudeste (25%), no Sul (20%) e no Centro-Oeste (26/%).
A discrepância é ainda maior no recorte das crianças vivendo em domicílios com renda per capita entre R$ 275,00 e R$ 550,00 por mês. Na região Norte, as crianças nessa situação somam 35% e as do Nordeste, 41%, ante 15,6% no Sudeste, 9,4% no Sul e 13,2% no Centro-Oeste.
O reflexo dessa situação na saúde das crianças brasileiras é inevitável. Estudo sobre a desnutrição (relação peso x idade) nas crianças entre 0 e 5 anos, mostra que a realidade vem piorando. Em 2015, as crianças brasileiras com desnutrição somavam 4,0% dos indivíduos nessa faixa etária. Em 2021, já eram 4,3%. No período, esse índice apresentou redução apenas na região Norte (5,9% para 5,4%), crescendo, entretanto, nas regiões Nordeste (de 4,1% para 4,7%), Sudeste (de 3,6% para 3,8%), Sul (de 2,7% para 3,3%) e Centro-Oeste (de 3,4% para 3,8%).
No quesito obesidade infantil, o índice nacional também piorou no mesmo período (de 2015 para 2021), passando de 7,4% para 7,6% da população infantil, puxado pelo aumento nas regiões Norte e Nordeste, que anularam o decréscimo registrado nas demais regiões do país.
Na questão do peso elevado para a idade, a piora no período foi ainda maior: passou de 8,1% para 10,4% das crianças entre 5 e 10 anos de idade. Esse índice apresentou elevação em todas as regiões, especialmente no Sul (de 10,1% para 13,0%).
Nesse intervalo de sete anos, somente a relação altura x idade apresentou índice positivo, caindo de 12,5% para 11,6% dessa população. O índice de mortalidade infantil para menores de um ano de idade para cada grupo de 1.000 nascidos vivos também caiu, mas muito pouco: de 12,4% para 12,0%. Os piores índices foram registrados, mais uma vez, nas regiões Norte (14,9%) e Nordeste (13,1%). A meta estabelecida pelo governo, de 5,0%, está muito longe de ser atingida.
A taxa de mortalidade entre os menores de 5 anos (para cada 1.000 nascidos vivos) caiu de 14,3% para 13,8%, mas o País continua muito distante da meta, de 7,5%. Os piores índices estão no Norte (17,7%) e no Nordeste (15,1%).
A situação é mais greve no índice de mortalidade materna (para cada 100 mil bebês nascidos vivos), que saltou de 60% para 110% no país, com crescimento em todas as regiões e de forma mais expressiva (superior a 100%) no Norte. Novamente, sem perspectiva de atingir a meta, fixada em 30%.
Este é o retrato – sombrio e grave – do Brasil, uma nação com realidades muito díspares entre as regiões Norte e Nordeste e as demais regiões (Sul, Sudeste e Centro-Oeste), e na qual 35% de sua população – 72,4 milhões de cidadãos -, viviam em 2021 com renda domiciliar per capita de apenas R$ 550,00 por mês, e outras 31,2 milhões de pessoas declararam viver com renda domiciliar per capita de míseros R$ 275,00 por mês. Isto é, metade da população brasileira enfrenta no dia a dia a angústia da insegurança alimentar.
Há outros fatores não menos importantes a se considerar. No Brasil de 2018, 46% das crianças entre 0 e 3 anos de idade necessitavam de creche, um contingente de 5,43 milhões de pequenos brasileiros. Uma população que só cresce, dado que a taxa de crescimento populacional no Brasil é de 1,14%, o que representa 2,31 milhões de nascimentos por ano, considerando-se a população do Censo 2022.
A realidade é estarrecedora. De acordo com levamento do Projeto Pipa (Primeira Infância para Adultos Saudáveis), divulgado em outubro de 2023, uma em cada 10 crianças com até 3 anos de idade no Brasil tem risco de baixo desenvolvimento face às condições socioeconômicas de suas famílias. Entre as crianças maiores de 3 anos, o risco é ainda maior: uma em cada 8.
O estudo também conclui que 14,9% das crianças não foram atendidas por uma equipe de saúde em sua primeira semana de vida, situação que obviamente tem reflexo na taxa de mortalidade.
Além disso, dados do DATASUS e do Sisvan, ambos do Ministério da Saúde, comprovam a gravidade da situação, mostrando que, em relação a peso x idade e altura x idade, 4,3% das nossas crianças sofrem de desnutrição, índice agravado no período de 2005 a 2018.
Há outro aspecto importante. Em parcela significativa dos lares brasileiros a mulher é a única pessoa adulta da família. Isso faz com que cerca de 46% das crianças brasileiras necessitem de atendimento em creches.
Esse conjunto de fatores coloca a infância nacional em situação de vulnerabilidade, resultando em milhões de crianças com a saúde afetada e/ou com comprometimento de seu completo desenvolvimento físico e intelectual e seus impactos em sua capacitação para o mundo competitivo.
Quando se soma essa questão nutricional à debilidade do sistema educacional, temos como consequência o desempenho de nossas crianças e adolescentes muito inferior aos de dezenas de países, inclusive da América do Sul, como mostram os resultados do PISA, Programa Internacional de Avaliação de Alunos, rede mundial de avaliação do desempenho escolar. O Brasil está estagnado entre a 55ª e 70ª posição entre as nações de maior desenvolvimento, e apresenta resultados pífios em Ciências, Língua Portuguesa e Matemática.
O futuro do país está sendo comprometido, fruto do fracasso das políticas públicas dos governos das últimas três décadas, nas quais as pessoas não foram priorizadas, nem existiu um plano de metas.
O Brasil precisa retomar o caminho de busca da melhoria da qualidade de vida de sua população, com transparência e sem ufanismos que não resistem a qualquer exame.
A gravidade da situação exige que nossas crianças e adolescentes sejam urgentemente colocadas no centro das políticas prioritárias do atual e dos próximos governos. Isso exigirá maior aporte de recursos, é verdade, porém a gestão séria, com redução dos privilégios, efetivo combate à sonegação e à corrupção, imprescritibilidade dos crimes contra a administração pública e cortes nos gastos desnecessários ou supérfluos, seguramente será capaz de garantir os investimentos necessários e inadiáveis para o Brasil se transformar em uma nação menos desigual, mais justa e mais competitiva para almejar sua inclusão no rol dos países desenvolvidos e alcançar protagonismo mundial em uma ou duas décadas.
Um bom passo nesse sentido foi dado em 2009, quando a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) tornando obrigatória a adoção do regime em tempo integral para a educação infantil e fundamental. A proposta acabou engavetada, infelizmente, porque o país já seria muito diferente se o ensino em tempo integral para todos tivesse sido implantado há 14 anos.
Entretanto, essa proposta continua mais válida do que nunca. O ensino fundamental em regime integral, com 30,9 milhões de alunos matriculados, sendo 26 milhões deles na rede pública, ao custo de R$2.500,00 por aluno/mês, representaria despesas de R$ 300 bilhões/ano na primeira década, considerando-se 10 milhões de alunos, e, na segunda década, custo de R$ 720 bilhões/ano, considerando-se 20 milhões de alunos.
Para transformar o ensino médio, com melhoria na qualidade de ensino, escolas mais bem equipadas e professores com remuneração justa, seriam necessários R$ 192 bilhões/ano para atender os cerca de 8 milhões de alunos matriculados, tendo-se R$ 2 mil como o custo individual do aperfeiçoamento por mês. No ensino técnico, com 180 mil alunos e o mesmo custo individual, o programa exigiria investimento anual de R$ 48 bilhões.
No ensino superior, o Brasil deveria tornar obrigatório que as universidades federais ofereçam para o período noturno o mesmo número de vagas do período diurno, com exceção dos cursos de tempo integral. Esse programa, com os 5,27 milhões de alunos matriculados (dados de 2021 do MEC), ao custo individual de R$ 10 mil/ano, exigiria subsídios da ordem de R$ 53 bilhões/ano.
Na base de tudo, imprescindível um programa para garantir creche e proteinização das crianças – em período integral – para 5,5 milhões de crianças entre 0 e 3 anos. Com custo de R$ 2.000,00 por mês por criança, o programa consumiria R$ 132 bilhões/ano.
Assim, essa completa revolução educacional custaria ao país R$ 725 bilhões/ano. Para fazer frente a esse montante, um caminho seria reduzir os gastos estratosféricos com o funcionalismo público que hoje consome de 12,80% a 13,0% do PIB. Percentual muito acima dos 9,80% do PIB que gastam nesse segmento, em média, os 37 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Se reduzisse esses gastos para o nível da OCDE, o Brasil faria uma economia de R$ 330 bilhões por ano, o suficiente para cobrir 42% de todo o novo programa.
Há outras fontes viáveis, como o controle de renúncias fiscais indevidas e injustificáveis, hoje consumindo de 4,8% a 5% do PIB. Cortar essas renúncias pela metade significaria recursos da ordem de R$ 275 bilhões/ano.
E o combate efetivo à corrupção, além de ser uma questão moral, também representaria receita. Calcula-se que a corrupção representa de 2,5% a 3% do PIB nacional e sua redução para o máximo de 1,5% – sem deixar de perseguir a meta zero – traria aos cofres públicos de R$ 110 a R$ 165 bilhões/ano.
Tudo isso resultaria em receita extra de R$ 715 a R$ 765 bilhões por ano, o suficiente para custear integralmente o programa, essencial para mudar a realidade do país, sem a necessidade de criação de novos tributos e sem tirar a receita de outros setores essenciais à nação. (Exemplo: Bolsa Família)
É factível, essencial e inadiável. O Brasil precisa atentar para o que escreveu o filósofo francês Albert Camus (1913-1960): “A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br